04/01/2007

O amor move o mundo

O amor move o mundo

Texto de Martha Medeiros

Ilustração Isabelle Tuchband


Ele já foi mais badalado. Atualmente,bem menos. Foi trocado pela paixão instantânea, pelo sexo ocasional e pelas fofocas venenosas. Estou falando do amor, lembra dele? Pois é, já viveu melhores dias na mídia (menos mau que aqui em CLAUDIA ele tenha cadeira cativa). Fico me perguntando: o que houve? Creio que hoje em dia, na era dos entusiasmos superficiais, ficou cafona falar em amor. Casais se unem, agora, por desejo, oportunidade ou conveniência. Todos querem se apaixonar amanhã e somar mais um nome ao currículo pessoal de aventuras, mas cultivar um amor para sempre? Nem pensar! O amor, para os desencantados do século 21, deixou de ser fotogênico e inspirador. Já deu os versos que tinha que dar. Quem teria paciência e tempo, hoje, para se dedicar a uma só pessoa? O amor faz sofrer, faz chorar e além disso não rende uma boa história para repartir com as amigas, não vira matéria de segundo caderno, não é encontrado no YouTube.O amor está fora de moda, como se fosse uma ombreira: não se usa mais. Amor, essa palavra outrora tão valorizada, desgastou- se. Sobrevive em campanhas publicitárias de Dia das Mães e olhe lá. A impressão que dá - e lamento profundamente - é que é um sentimento que só atrapalha. O príncipe Charles e sua Camilla, coitados, sabem do que estou falando. Levaram mais de três décadas para conseguir se unir, enfrentaram reis e súditos, foram alvo de acusações conspiratórias e gozações de todos os chargistas do planeta e até tiveram que pedir desculpas públicas antes de casar, todo esse martírio por quê? Porque estavam em desacordo com os novos tempos. Pagaram todos os pecados por terem insistido em sua love story antiquada. Azar o deles, devem pensar os paparazzi. Quem mandou teimarem nesse amor longevo? Que agora desfrutem o ostracismo.

O amor segue valorizado, apenas, no cinema e nos livros de ficção. Me vem à cabeça o romance O ANIMAL AGONIZANTE, de Philip Roth, cujo personagem é um professor pra lá dos 70 anos que se agarra à vida por um arrebatamento inesperado que passa a sentir por uma aluna de 24. E Gabriel García Márquez em seu excelente MEMÓRIA DE MINHAS PUTAS TRISTES, em que o narrador, de 90 anos, também se exaspera de amor por uma ninfeta. Isso para ficar apenas em histórias escritas recentemente e com enredos pouco ortodoxos. Poderia citar, ainda entre os autores contemporâneos, os livros da portuguesa Inês Pedrosa e tantas outras escritoras que, por meio da literatura, investigam esse sentimento, que é tão difícil de se concretizar da maneira como o idealizamos. Todo amor nos parece impossível, tanto nos livros como na vida real. Se não for impossível, é quase.

Eis aí a razão da sua força e mistério. Por que um amor sempre se apresenta a nós como impossível? Por diferenças raciais, sociais ou de idade? Por que um dos amantes é casado? Por que moram em lugares distantes um do outro? Por que as famílias não aprovam a união, no melhor estilo Capuleto e Montecchio? Eu arriscaria dizer exatamente o contrário: o amor é possível em qualquer circunstância, pois nada é mais poderoso do que o que a gente sente. Nada. Nem mesmo o que a gente pensa.

O amor é muito mais exigente do que a paixão efêmera: ele pressupõe a construção de duas vidas a partir de uma simples troca de olhares, que é como tudo geralmente começa. Enquanto a paixão se esgota em si mesma e não está interessada no amanhã, o amor é ambicioso, se pretende eterno e, para pavimentar essa eternidade, não mede esforços. Duas pessoas que nunca se imaginaram juntas de repente atendem a um chamado interno do coração e investem nessa união de olhos abertos (a paixão geralmente é vivida de olhos fechados, concorda?).O amor é uma loucura disfarçada de sanidade. Uma loucura registrada em cartório, mas que, mesmo permitida e oficializada, amedronta a todos. O amor é uma loucura sem volta. Não fosse uma loucura, o amor não seria o que é: lírico e profundo, rebelde e transformador. Amar é a transgressão maior. É quando rompemos com a nossa solidão para inaugurar uma vida compartilhada e, portanto, inédita.

Só mesmo a loucura inclassificável do amor para fazer as pessoas criarem trigêmeos, trocarem de sobrenome, dividirem o mesmo banheiro, relacionarem-se com a família do outro e acharem tudo isso normal e inebriante. O amor move o mundo porque nos faz tomar decisões radicais, mudar de país, reinventar a rotina, comprar imóveis, perpetuar a espécie e, diferentemente da paixão, que se agarra ao presente, nos faz planejar um futuro. A vida só está em movimento porque o amor é andarilho e inquieto. Se ele pára, é porque deixou de ser amor. Cessa a evolução, a mudança, o crescimento.


O mundo deixa de se mover. Mais ainda: poderíamos dizer que o amor é um processo salutar de autodesconhecimento. Você nunca conviveu com a pessoa que começou a amar, portanto você precisa conhecê-la, e ela a você. Diante dessa página em branco, somos obrigados a nos passar a limpo, e para isso é preciso desconsiderar todas as nossas certezas absolutas cultivadas até então e abrir-se para a formação de uma nova identidade. Poucas coisas nos reciclam tanto. O autoconhecimento, o.k., nos dá respostas seguras sobre nós mesmos, mas segurança demais pode nos paralisar. O autodesconhecimento é que nos empurra para a frente.

A ânsia do amor, a dúvida do amor, a incerteza do amor, a dor do amor: uma ameaça, mas ao mesmo tempo um desafio. Se não estivermos sentindo nada, o que nos fará levantar da cama toda manhã? O piloto automático, nada mais.

Mesmo com o amor desprestigiado, lá no fundo sabemos que tudo o que somos devemos a ele, o amor vivido e também o amor que nos foi negado. E aí amplio o universo do amor, não falo apenas do amor romântico, mas do amor familiar, do amor religioso, do amor entre amigos. É o único combustível capaz de justificar nossa existência, já que dinheiro e poder, que tanto se almejam, continuam deixando um buraco na alma, um vazio que nada preenche. É preciso que tenhamos aprendido, desde os primeiros minutos de vida, a importância de termos sido desejados e protegidos. Só assim saberemos desenvolver e doar o próprio amor, caso contrário, estaremos perpetuando o deserto afetivo que nos cerca. Por isso, é vital nos perguntarmos: que espécie de introdução à vida amorosa tivemos? Talvez um pai que nunca nos abraçou, uma mãe mais interessada em vestidos do que nos filhos, uns poucos parceiros de festa (mas nem sequer um ou como o címbalo que retine." São Paulo, primeira epístola dos coríntios, cap. 13, v. 1-7. Eis um pouquinho de reflexão neste mês natalino, em que o amor sai do limbo, ganha novo fôlego e avisa que ainda está vivo. Sem dúvida, está. Seu aparente desprestígio é conseqüência da pressa de viver, da urgência dos dias, da necessidade de se "aproveitar" cada instante, como se o amor fosse um impedimento para o prazer. Francamente, o que se aproveita, de fato, quando não se sente coisa alguma? A resposta é: coisa alguma.

O.k., mas e quem não teve a sorte de encontrar um parceiro à altura? Todos tivemos nossas chances. Alguns, uma única, mas a maioria de nós teve várias oportunidades, diversos amores. Amores curtos, mas inesquecíveis. Amores tumultuados, mas que geraram filhos. Amores que naufragaram, mas que nos amadureceram. Amores duradouros, que ainda não acabaram. Todos eles nos incentivando a continuar a procurar, a continuar a tentar, porque quem diz que nunca mais quer amar mente, mesmo que não saiba. Mente. Sem amor, somos tensos. Com amor, somos intensos. E termino o texto sem pudor de usar um trocadilho rimado, coisa que o amor permite: ele, que nunca foi cafona e é o sentimento mais revolucionário que existe.

QUE PODE UMA CRIATURA SENÃO, ENTRE CRIATURAS, AMAR?(...)
AMAR, DESAMAR,AMAR? SEMPRE, E ATÉ DE OLHOS VIDRADOS AMAR?

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE/AMAR


fonte: Revista Claudia - edição de dezembro de 2006

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