18/02/2008

América Latina

Gente, não repara não... É que tô precisando estudar pro dia 09/03 e a única maneira de não perder esse texto - sem precisar imprimi-lo para não agredir la madre naturaleza - é guardá-lo aqui.

Mas quem quiser, fique à vontade pra ler também. É um texto muito bom. Eu recomendo.

Boa semana a todos.



América do Sul: do destino à construção
Marco Aurélio Garcia

Marcada há décadas por desequilíbrios econômicos, desigualdades sociais e autoritarismo político, a América do Sul vem passando desde fins dos anos 90 por transformações políticas, econômicas e sociais profundas e aceleradas.

O crescimento da economia reverte a prolongada tendência recessiva de um passado recente. Vem acompanhado de um equilíbrio macroeconômico sem precedentes: inflação baixa, boa situação fiscal, contas externas superavitárias, consideráveis reservas cambiais.

Apesar da persistência de graves problemas sociais – pesada herança do passado –, o surto atual de crescimento na região tem permitido a expansão do emprego e da renda e, em maior ou menor medida, a redução da pobreza e da desigualdade. Para a melhora da situação social contribui ainda um conjunto de políticas públicas praticadas por quase todos os governos no plano da educação, da saúde, da habitação e do saneamento ou por meio dos programas de transferência de renda.

Politicamente, a situação é também inédita, uma vez que todos os governos sul-americanos resultam de eleições livres e democráticas, marcadas por ampla participação popular e pelo aparecimento de novos personagens, até bem pouco tempo atrás relegados às coxias da cena política continental.

É possível que a força que ganharam as propostas de integração na América do Sul decorra da percepção – que têm governos e sociedade civil – acerca das transformações em curso no mundo atual.

Se for certa a tendência de construção de um mundo multipolar, que sucederá ao unilateralismo declinante de hoje, abrem-se grandes perspectivas para a América do Sul.

A região dispõe da maior biodiversidade e dos maiores recursos energéticos e hídricos do planeta. É grande produtora de alimentos. Alguns de seus países possuem significativo parque industrial, universidades e centros de pesquisa científica e tecnológica de excelência. A extensão e a diversidade de seu território, somadas ao tamanho de sua população e a seu PIB, são trunfos importantes para quem tem pretensões de ser ator global.

A isso, acrescente-se ainda o fato de a América do Sul ser uma zona de paz, onde, à exceção do conflito colombiano, não se verificam situações de beligerância como em outras partes do mundo.

Para lograr a integração que lhe permita uma presença global, a região necessita garantir crescimento sustentado para enfrentar seu maior desafio – a persistência da pobreza e, sobretudo, da desigualdade social.

Em sua agenda – além da questão social e ligada a ela – está a construção de uma infra-estrutura física e energética capaz de dar viabilidade e consistência à integração. Não por acaso essas questões, junto com a criação de mecanismos financeiros, como o Banco do Sul, estão no centro das discussões da União das Nações Sul-Americanas (Unasur), cujo Trata do Constitutivo está em processo de elaboração.

A contradição entre a consciência da necessidade da integração e o ritmo lento em que ela se realiza – sem falar dos conflitos e retrocessos eventuais – pode ser explicada pela diversidade dos processos econômicos, sociais e políticos em curso em cada um dos países.

No Cone Sul
Sem intenção de construir uma tipologia de países – procedimento perigoso, pois tende a aniquilar especificidades e produzir falsas coincidências ou antagonismos –, é possível descobrir afinidades históricas que ajudam na compreensão do complexo mosaico que é a América do Sul.

Pode-se estabelecer similitudes entre as situações de Chile, Argentina, Uruguai e Brasil, assim como descobrir algumas aproximações na evolução de países como Venezuela, Peru, Equador e Bolívia.

Nos anos 1960-1970, os quatro países viveram profundas crises econômicas e sociais com graves desdobramentos políticos.

Ainda que com economias diferenciadas, enfrentaram nesse período a crise de seus projetos nacional-desenvolvimentistas, que, por meio de uma industrialização substitutiva de importações mais ou menos radical, havia produzido considerável transformação na economia e na sociedade, especialmente a partir dos anos 1930-1940.

Na queda do ambíguo reformismo de Goulart, nos sucessivos impasses do peronismo – desde a deposição do general em 1955 até sua metamorfose nos 70 –, no fim trágico da experiência do socialismo chileno ou no colapso do modelo de bem-estar uruguaio, revelaram-se, ainda que em forma diferenciada e alternada, os limites do projeto nacional-desenvolvimentista.

Em alguns casos, verificou-se a incapacidade de obter crescimento e estabilidade macroeconômica e de lograr de forma sustentada um processo de distribuição de renda que atendesse às crescentes demandas daqueles que ingressavam na sociedade de massas em construção. Em outros casos, predominou a incapacidade de combinar desenvolvimento com democracia.

O golpe de 64 no Brasil, a sucessão de aventuras militares na Argentina, de 1955 aos anos 70, o pronunciamiento de Pinochet ou a deriva autoritária do Uruguai tiveram como mola propulsora a decisão conservadora de frear as fortes mobilizações populares que propugnavam reformas estruturais no modelo hegemônico.

A agenda das mudanças incluía a redução da vulnerabilidade externa de nossas economias, o fortalecimento do papel do Estado e reformas econômicas, sociais e políticas em proveito das maiorias excluídas.

A violência dos golpes foi diretamente proporcional ao peso dos movimentos sociais, em especial de suas organizações sindicais e partidárias.

As ditaduras militares se igualaram em seu rechaço à democracia e às práticas e instituições do Estado Democrático de Direito. Diferenciaram-se no que se refere às opções de política econômica. No Chile, na Argentina e no Uruguai optou-se por uma orientação (neo)liberal, com fortes componentes antiindustriais, reforçados por uma pronunciada abertura externa. Já os militares brasileiros – após o breve ajuste dos primeiros anos da ditadura – aprofundaram o nacional desenvolvimentismo, agravando seus traços autoritários e concentradores de renda.

As conseqüências foram diferenciadas: a política neoliberal nos três primeiros países, além de golpear estruturalmente as classes trabalhadoras, baseou-se na cruel repressão política a suas organizações. No Brasil, o desenvolvimentismo dos militares – ainda que golpeando sindicatos e esquerdas – foi acompanhado de um enorme crescimento das classes trabalhadoras e, a despeito da repressão assinalada, acarretou o surgimento de um sindicalismo de novo tipo, como aquele que esteve na origem do Partido dos Trabalhadores.

Essas realidades diversas tiveram conseqüências no processo de democratização que se seguiu ao fim das ditaduras nos quatro países.

A transição para a democracia ocorreu ao mesmo tempo que a implementação de políticas de ajuste, com as quais supostamente se buscava enfrentar os desequilíbrios macroeconômicos, preparando os países para uma etapa de crescimento. O caráter tardio do ajuste brasileiro, só ocorrido nos anos 90, deveu-se ao peso da mobilização dos trabalhadores e às resistências manifestadas por setores empresariais e das classes médias.

Os resultados, em todos os casos, foram opostos às intenções que os conservadores perseguiam e anunciavam. Não se logrou o equilíbrio macroeconômico, como ficou emblemática e tragicamente demonstrado no caso argentino. Tampouco os países foram preparados para um ciclo de crescimento. Ao contrário: desnacionalizou-se e desestruturou-se o aparato produtivo; sucateou-se o Estado, impossibilitando-o de exercer até mesmo uma função regulatória; degradaram-se as políticas públicas; os movimentos sociais foram criminalizados, enquanto o pensamento único buscava desqualificar alternativas teóricas e políticas contestatórias.

O fracasso dessas políticas – que conduziu os quatro países a uma profunda crise econômica e social, quando não institucional – provocou a onda renovadora que permitiu as vitórias sucessivas da Concertación no Chile, as duas eleições de Lula no Brasil, a vitória de Néstor Kirchner e a posterior eleição de Cristina Fernández, na Argentina, e o triunfo de Tabaré Vázquez, no Uruguai.

As diferenças nas políticas econômicas aplicadas em cada um dos países correspondem menos a posturas ideológicas dos seus governantes do que a condicionantes nacionais que aconselhavam tratamento distinto para realidades diferenciadas.

Sem ânimo de qualquer exercício de futurologia ou mesmo de fazer previsões de curto ou médio prazo, parece evidente que os quatro países entraram em um círculo virtuoso de desenvolvimento, que associa crescimento, distribuição de renda e fortalecimento democrático.

O próprio tema da vulnerabilidade externa – que ocupou sempre lugar central na política sul-americana – aparece hoje de forma bastante diferente. A maioria dos analistas assinala que o aprofundamento da atual crise econômica internacional não terá sobre a América do Sul o impacto destruidor que se fez sentir nos sucessivos episódios da década de 90.

Uma mudança de época?
O ímpeto reformador que ocorre na área andina tem outra configuração histórica.

Em primeiro lugar, porque as economias de Venezuela, Peru, Equador e Bolívia são bastante distintas daquelas do Cone Sul. Trata-se de economias baseadas em importantes fontes energéticas – petróleo e gás – e em abundantes recursos minerais.

As classes dominantes desses países, em boa medida, não utilizaram, no passado, o importante trunfo que representavam esses produtos primários para construir economias mais complexas, agregando valor ao petróleo, ao gás ou aos minérios. Tampouco usaram os excedentes das exportações para construir uma agricultura – que as condições permitiam e aconselhavam desenvolver – para atender, no mínimo, o mercado interno. Menos ainda foram capazes de uma iniciativa industrializante consistente. Em poucos casos – e apenas circunstancialmente – realizaram políticas redistributivistas.

Ao contrário, fortaleceu-se uma classe dominante basicamente rentista e parasitária. O drama da polarização social daí decorrente foi potencializado de forma explosiva pelo forte componente étnico presente em países como Bolívia, Equador e Peru.
A vulnerabilidade externa de economias primário-exportadoras mineiras é historicamente conhecida. Os efeitos da crise de 1929 na América Latina demonstram que foram elas as mais atingidas por aquele episódio. O impacto de crises estruturais ou sazonais sobre o equilíbrio fiscal do Estado é muito forte. A experiência do “Caracazo”, como ficou conhecida a rebelião popular de 1989 em resposta às medidas aplicadas pelo então governo venezuelano, por determinação do Fundo Monetário Internacional, é exemplo revelador, mas não o único.

Essa classe dominante rentista construiu sistemas políticos perversos. Uns aparentemente estáveis, como o venezuelano, onde partidos tradicionais se alternaram no poder. Outros mais visivelmente instáveis, como revelam as sucessivas crises na Bolívia e no Equador ou a aventura fujimorista no Peru. Todos crescentemente apartados das reivindicações populares e insensíveis, sobretudo, às demandas provenientes do fundo dessas sociedades, em especial dos povos originários.

Esse quadro explica a evolução recente da zona andina, marcada pela emergência das camadas populares na política. Essa irrupção ocorre em um ambiente institucionalmente frágil, quando não em desagregação. Não é ocasional – menos ainda resultado de um suposto radicalismo – que em três desses quatro países se tenha colocado a necessidade de uma Assembléia Constituinte para reorganizar as instituições, ajustando-as à nova configuração sociopolítica dos países.

O que uma visão simplista, teoricamente, e conservadora, politicamente, chama de ressurgimento do “nacionalismo populista” na área andina, supostamente responsável pela “desestabilização” da região, não passa da construção de um novo equilíbrio político.

Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa, longe de serem fatores de instabilidade, são, antes, a possibilidade real de uma nova estabilidade fundada não na desigualdade e iniqüidade sociais ou na submissão externa, mas na soberania nacional e popular.

Nesse sentido, independentemente das diferenças de apreciação que possa haver em relação às experiências em curso na Venezuela, na Bolívia e no Equador, é evidente que esses países vivem hoje mais que uma época de mudanças. Como diz Rafael Correa, lá se assiste a uma “mudança de época”.

Os sintomas de “instabilidade” que alguns detectam nesses ricos processos são fundamentalmente sinais recorrentes em todas as “mudanças de época” na História.

A própria realidade peruana não é alheia a esse quadro. Não por acaso, no segundo turno das últimas eleições presidenciais daquele país defrontaram-se dois projetos de forte base popular. O reformismo aprista de Alan Garcia, vencedor, e o projeto reformista de Ollanta Humala.

O caráter esquemático destas notas – explicável pelas limitações do espaço e da capacidade analítica do autor – deixa de fora situações históricas complexas e relevantes como as da Colômbia e do Paraguai, para não falar da Guiana e do Suriname. O que se buscou basicamente foi oferecer, com a precariedade assinalada, um dos cenários possíveis para compreender as transformações em curso na região.

Ele talvez ajude a esclarecer um paradoxo: por que o forte ímpeto reformista econômico, social e político na América do Sul, que anima projetos de integração regional, vem acompanhado de tendências centrífugas e de conflitos que criam dificuldades a essa mesma integração.

Ainda que esteja fora dos propósitos desta reflexão, penso que o entendimento dos processos em curso na América do Sul permitirá compreender não só as formulações mais gerais da atual política externa brasileira como também suas manifestações práticas.

Os dilemas que vive a região não são o resultado de visões “realistas”, de um lado, contra posições “ideológicas” e “voluntaristas”, de outro. Simplesmente refletem percepções e, sobretudo, interesses diferenciados. Para quem se acostumou com uma América do Sul monocórdia, isso pode chocar.

Muitos pensavam que a evolução do continente não passava de uma questão de destino. Não percebem, ou não querem perceber, que a História é, antes de tudo, construção humana.

Marco Aurélio Garcia é assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência da República.

Texto publicado na revista Teoria & Debate, edição de janeiro/fevereiro de 2008.

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