20/09/2009

a arte de perdoar

(...) A verdadeira questão filosófica do perdão é a opção de aplicá-lo. Mais importante que perdoar é decidir perdoar com convicção, o que implica visitar os princípios da justiça.
No casamento de sua filha, meu amigo José Ernesto protagonizou um dos mais comoventes momentos que eu já tive a oportunidade de presenciar. Ao dizer aos noivos o que ele lhes desejava, aconselhou: 'Sempre que possível escolham o perdão. Sempre que necessário escolham a justiça'.
Em duas frases ele sintetizou a essência das relações humanas que valem a pena. As relações devem ser dotadas de valores, não apenas de objetivos comuns. Quando as pessoas se juntam apenas por motivos utilitários, remetem sua relação à época dura das cavernas, em que tudo era permitido em nome da sobrevivência. Casamentos, amizades, empresas, agremiações políticas - qualquer tipo de encontro entre pessoas tem um objetivo que as mantenha unidas, mas, se for apenas isso a uni-las - objetivos, metas, destinos -, pessoas não serão pessoas, mas meros componentes de uma engrenagem mecânica. Ao humano, competências conferem utilidade, valores providenciam dignidade.
Não há vida digna sem justiça, e o perdão é parte dela. Parte. Perdão não é justiça. Perdão é decorrente da justiça. E praticar justiça remete a pessoa à tarefa de julgar, provavelmente a mais ingrata das missões humanas, pois significa entender os motivos de quem fez o que fez, considerar os efeitos do que foi feito e decidir sobre a pena justa e conveniente, que pode ser, entre outras, o perdão.
É possível perdoar o assassino frio, o estuprador impiedoso, o corrupto contumaz? É justo perdoar o juiz da Inquisição, o patrocinador do Holocausto, o instaurador do Apartheid? Ora, sem considerar a justiça, o perdão é obsceno; sem contemplar o perdão, a justiça é malévola; afinal a justiça é uma necessidade, o perdão, uma possibilidade.
Ainda assim, mesmo considerando que seja pesado julgar, difícil ponderar os fatos envolvidos, doloroso relevar mágoas, impossível esquecer ofensas, o ato de perdoar é grande, digno e belo. Até porque, ao julgar alguém, é conveniente fazer algum julgamento de si mesmo, para, ao perdoar o outro, guardar para uso próprio um pouco do perdão. Porque você, eu, qualquer um, se viveu uma vida, precisará ser perdoado por não tê-la aproveitado melhor.
(Eugenio Mussak em 'As mágoas vão rolar', Revista Vida Simples edição 84, outubro de 2009)

Nenhum comentário: